
Audiência Pública debate violações de direitos humanos em ações policiais em Sergipe
A Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese) sediou, na tarde desta terça-feira (15), uma Audiência Pública para debater as violações de direitos humanos em ações policiais no Estado de Sergipe. O encontro, realizado na Sala de Comissões da Casa, foi promovido pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, por requerimento da deputada estadual Linda Brasil (PSol).
O evento reuniu representantes do Ministério Público, Defensoria Pública, movimentos sociais, especialistas e familiares de vítimas para discutir os alarmantes índices de letalidade policial no estado e pensar coletivamente em medidas para a redução da violência e promoção da segurança com cidadania.
Sergipe entre os estados com maior letalidade policial do país
Dados do Mapa da Segurança Pública 2025 (Sinesp) revelam que Sergipe ocupa a 4ª colocação nacional em mortes provocadas por policiais. Entre 2020 e 2024, foram mais de 950 mortes em operações das forças de segurança. Só em 2023, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 229 mortes decorrentes de intervenções policiais, sendo 10,4 por 100 mil habitantes, a terceira maior taxa do país.
O cenário se agrava ao considerar o recorte racial. Segundo o mesmo anuário, a taxa de mortalidade de pessoas negras em intervenções policiais é 289% maior do que entre pessoas brancas. Além disso, em Sergipe, uma em cada três mortes violentas de crianças e adolescentes (0 a 19 anos) em 2023 foi causada por ações policiais, conforme dados da UNICEF e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Deputada Linda Brasil: “Não podemos naturalizar a violência policial”
Deputada Linda Brasil
Autora do requerimento, a deputada Linda Brasil destacou que a audiência teve como objetivo provocar uma reflexão crítica sobre o modelo de segurança pública vigente.
“Sergipe está entre os estados que mais matam por ações policiais. Isso não pode ser tratado como algo normal. É um tipo de segurança que muitas vezes criminaliza a população negra e periférica. Não estamos falando de casos isolados, mas de um padrão que precisa ser transformado. A expectativa é que saiam daqui propostas concretas, como a criação de protocolos, capacitação dos agentes e políticas públicas voltadas para os direitos humanos”, afirmou a parlamentar.
A deputada também lembrou o caso de Genivaldo de Jesus Santos, morto por asfixia em uma viatura da PRF em Umbaúba, que ganhou repercussão internacional, como um exemplo emblemático da urgência do debate.
Presenças e contribuições no debate
Estiveram presentes na audiência o deputado Georgeo Passos (Cidadania); o promotor Rogério Ferreira, do Ministério Público de Sergipe; a defensora pública Janara Pereira, do Núcleo de Combate ao Racismo e à Discriminação Étnico-Racial (NUCORA); o defensor Sérgio Barreto Morais, diretor do Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública; a professora e jurista Andréa Depieri, da Universidade Federal de Sergipe; Iyá Sônia Oliveira, ialorixá e perita do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura; a vereadora por Aracaju, Professora Sônia Meire; o coronel/PM, José Pereira de Andrade Filho, ouvidor da Secretaria de Estado da Segurança Pública de Sergipe SSP, que na oportunidade representou o Secretário de Estado da Segurança Publica de Sergipe, Sr. João Eloy.além de representantes de movimentos sociais como Bruna Bittencourt (Fórum de Entidades Negras e Frente Negra Revolucionária) e Luciana Katia (Coletivo Saudade/SE).
Excesso de força e impacto na vida de policiais também foram pautas
Professora Dra. Andréa Depieri
A professora Doutora e jurista Andréa Depieri, docente de Direito da Universidade Federal de Sergipe, destacou que a letalidade policial não pode ser vista como algo natural:
“Historicamente, vemos que o número de mortes em incursões policiais é extremamente alto. Mesmo quando há redução em algum período, a taxa continua alarmante. Isso evidencia um excesso no uso da força, que pode configurar inclusive execuções extrajudiciais.”
Andréa também abordou os reflexos desse modelo sobre os próprios policiais:
“O uso desmedido da força tem impacto também sobre quem a exerce. Vemos altos índices de suicídio entre policiais, além de envolvimento em violência doméstica e outros tipos de conflitos. Isso mostra que há algo errado na forma como essa força é administrada.”
Para a professora, é essencial discutir os protocolos de atuação das polícias e garantir um uso progressivo e proporcional da força, com base nos direitos humanos.
Ministério Público reconhece avanços e desafios estruturais
O promotor de Justiça Rogério Ferreira, do Ministério Público de Sergipe, reconheceu as falhas do sistema e defendeu uma visão mais ampla sobre segurança:
Promotor de Justiça, Rogério Ferreira
“Temos um sistema de segurança com problemas estruturais que não serão resolvidos do dia para a noite. Mas é importante destacar que há diálogo. Os órgãos têm buscado sentar à mesa e discutir soluções.”
Rogério também apontou a necessidade de o estado se preparar para novas formas de criminalidade:
“Hoje, muitos crimes deixaram de acontecer nas ruas e passaram para o ambiente virtual. Temos idosos sendo vítimas de golpes bancários, fraudes digitais. A segurança pública precisa se preparar para combater a criminalidade do futuro, e isso exige investimento, tecnologia e mudança de mentalidade.”
Segundo o promotor, pensar segurança pública vai além de ações policiais: “Envolve educação, saúde e dignidade. Investir nesses setores é, também, garantir segurança”.
Racismo estrutural e acolhimento às vítimas
A defensora pública Janara Pereira, coordenadora do recém-criado Núcleo de Combate ao Racismo e à Discriminação Étnico-Racial (NUCORA), reforçou o caráter racial da violência policial:
Defensora pública, Janara Pereira
“Os números falam por si. A violência policial no Brasil e em Sergipe tem alvo: a juventude negra. E essa realidade precisa ser enfrentada com políticas públicas e acolhimento.”
Janara apresentou o trabalho do NUCORA, criado em 2025, que atua no atendimento jurídico e psicológico de vítimas de violência racial e policial:
“Nosso núcleo oferece apoio integral, cível, criminal e administrativo. O atendimento é realizado com agendamento prévio, e nosso objetivo é sempre respeitar a vontade da vítima, seja para reparação, responsabilização ou acompanhamento psicológico.”
O núcleo está localizado na Avenida Ministro Geraldo Barreto Sobral, nº 1436, em frente ao Shopping Jardins, com atendimento mediante agendamento.
Caso Wagner Júnior: o luto de uma mãe por justiça
Sra. Luciana Katia, do Coletivo Saudade/SE
A audiência também deu voz aos familiares de vítimas. Luciana Katia de Oliveira Silva, integrante do Coletivo Saudade/SE, emocionou os presentes ao relatar o caso do filho Wagner Júnior, servente de pedreiro de 23 anos, morto há um ano e seis meses durante uma abordagem policial no bairro Japãozinho, em Aracaju.
“Meu filho foi abordado quando saía de casa para trabalhar e nunca mais voltou. Ele não reagiu, não tinha passagem, não estava armado. E até hoje ninguém foi responsabilizado”, disse.
Luciana criticou a lentidão nas investigações e o silenciamento dos casos:
“Não é só uma morte, é a destruição de uma família. Estamos aqui para dizer que não vamos nos calar. A justiça precisa alcançar também os filhos das periferias.”
Outros familiares de vitimas de violência policial que estavam presentes nas galerias, fizeram uso da palavra.
Iyá Sônia Oliveira: “Segurança pública não é violência”
Representando o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, a ialorixá e perita Iyá Sônia Oliveira defendeu uma atuação policial pautada no respeito às comunidades:
Ialorixá, Iyá Sônia Oliveira
“Não podemos confundir segurança pública com práticas violentas. A polícia não está nas ruas para julgar ou punir ninguém, mas para proteger a população. Infelizmente, o que vemos nas periferias é o oposto disso.”
Ela criticou a forma como a sociedade costuma tratar os casos de violência policial:
“A mídia noticia, o caso repercute e depois silencia. A sociedade precisa se envolver nesse debate e cobrar respostas. Não podemos naturalizar que jovens negros continuem sendo mortos por quem deveria protegê-los.”
Projeto de Lei propõe nova política de segurança
Durante o evento, foi destacada também a tramitação do Projeto de Lei nº 79/2025, de autoria da deputada Linda Brasil. A proposta institui a Política Estadual de Segurança Cidadã e Preservação da Vida nas Atividades Policiais, e foi construída com a participação de coletivos, juristas e entidades da sociedade civil.
O projeto prevê:
• Criação de mecanismos de monitoramento independente das ações policiais;
• Protocolos sobre uso proporcional da força;
• Responsabilização por abusos e violações;
• Fomento à cultura de direitos humanos, transparência e dignidade.
Encaminhamentos
Ao final da audiência, ficou o compromisso de articulação entre os órgãos presentes para a elaboração de um protocolo conjunto de atuação que vise à preservação da vida, ao respeito aos direitos humanos e ao combate ao racismo institucional. O relatório da audiência será encaminhado aos órgãos competentes como subsídio para formulação de políticas públicas na área de segurança.
Fotos: Jadilson Simões / Agência de Notícias Alese